sexta-feira, 3 de maio de 2013

Com as próprias luvas / O anjo negro

Transcrevemos duas crônicas do excelente José Roberto Padilha. Brilhante como jogador, treinador e agora Secretário de Esportes do Município de Três Rios.


COM AS PRÓPRIAS LUVAS

Sabem daqueles episódios cuja simples lembrança nos dão desconforto, náuseas e ânsia de vômito? Tipo Treblinka, a visão de magérrimos judeus em fila rumo ao extermínio, ou um remake sobre a Escola Base, em São Paulo, quando uma família de educadores foi linchada pela precipitação de pais e irresponsabilidade de um delegado. No futebol nada me incomoda mais do que as histórias sobre Barbosa, nosso goleiro da Copa do Mundo de 1950, atirado às bruxas por não ter evitado o gol de Gighia que deu o título ao Uruguai. A cada lembrança, cada Baú do Esporte revivido traz à tona desnudando, até o seu falecimento, magoado, pobre e esquecido, uma das maiores injustiças que o esporte já proporcionou. Em seu ultimo depoimento, deixou uma confissão de mágoa: “A escravidão do Brasil já acabou há muito tempo, eu devo ser o ultimo que ainda não fui liberto!”. 

Barbosa tem sido, desde então, o símbolo maior do racismo nacional, cínico e enrustido, que pulveriza o acesso dos negros à igualdade social, negando-lhes oportunidades a partir das discutíveis escolas públicas colocadas à sua disposição, cujo meio expediente só lhes qualifica para ocupar o terceiro, quarto andar das sobras do mercado de trabalho.

No Fluminense dos anos 70 em que me formei, o acesso a parte social lhes era terminantemente proibido. Piscina? Toninho Baiano, Carlos Alberto, Pintinho, Erivélton e Cafuringa, meus melhores amigos, nem suas dores musculares poderiam nelas relaxar. Chegaram a abrir um portão, na Rua Pinheiro Machado, para evitar o contágio com os associados. Quando conquistamos o título nacional de 1970, Francisco Laport, o desavisado presidente, prometeu no vestiário da vitória um título de sócio proprietário para cada jogador. Na segunda, na realidade pó-de-arroz de seu gabinete, lhe mostraram o elitista estatuto que impediria à distinção. Alguém lhe sugeriu um titulo simbólico pro capitão, aí lembraram que era o Denilson, o “Rei Zulú”, e o presente acabou caindo no colo do Félix, branco e tricampeão, que a partir daí assumiu a braçadeira e a anistia para entrar pela porta da frente.

Todo este trauma nos reacendeu assistindo a ultima grande exibição do goleiro Jefferson, do Botafogo, no ultimo sábado, onde pegou até pênalti. Goleiro menos vazado do estadual, melhor goleiro do país em atividade, a questão é: às vésperas de uma nova Copa do Mundo, em casa, estará nosso país preparado para não cometer a outra injustiça? Sacrificar outro inocente?

Muita coisa mudou de 1950 pra cá no esporte, e a favor dos negros. Foram melhores com os pés (Pelé), com as Mãos (Michael Jordan), com os tacos de golfe (Tiger Woods) com as pernas em velocidade (Usain Bolt) e em distância: desde então nunca mais algum branco alcançou os quenianos nas corridas. Fora dos esportes, pouca coisa avançou: as edições da Revista Caras, o diário oficial dos bem sucedidos, tem postado, em média, 268 fotos coloridas, envolvendo 800 celebridades. Delas, apenas quatro são negros, quase sempre dois deles estrangeiros.

Mesmo assim, Luiz Felipe Scolari, em 2002, no auge de Dida, preferiu se acomodar no dito popular, no preconceito enraizado, não arriscar e dar a camisa nº 1 ao Marcos. De volta à seleção, tem preferido escalar Diego Cavallieri como titular. Outras vezes, anda insistindo no Barbosa anistiado branco, Julio César, atualmente reserva no Queens Park Rangers, recém rebaixado na Inglaterra. 

Millôr Fernandes dizia que, no Brasil, não há racismo porque o negro conhece o seu lugar. Mas e no gol do Brasil, será que, no momento, alguém defenda aquela ultima trincheira melhor do que o Jefferson? 

Domingo tem Flu x Botafogo na decisão da Taça Rio. Jefferson x Diego Cavallieri. Espero que meu tricolor vença, mas que Jefferson seja novamente o melhor em campo, torne-se uma unanimidade durante o Campeonato Brasileiro para ano que vem promulgar, com as próprias luvas e durante a Copa do Mundo, uma nova lei do gol livre. A Lei Jefferson. Um sistema de cotas, reparações e libertações que permita a qualquer brasileiro, independente da sua cútis, defender tanto o gol da sua seleção como atuar, de igual para igual, em qualquer posição dentro da sociedade.


Obs.: Com todo respeito ao excelente Zé Roberto, o Blog torce para a vitória do Botafogo.


 O ANJO NEGRO

Confesso que não tive a melhor das impressões quando ele desembarcou no galeão e a torcida do Botafogo, em completa euforia, o carregou no colo enquanto um ídolo seu, Loco Abreu, com serviços mais que prestados e títulos alcançados, deixava o aeroporto em silencio pela porta dos fundos. Tratava-se de uma enorme injustiça, mas ele, Clarence Seedorf, não tinha nada com isto. Chegara ao Brasil para se despedir do futebol e escolhera o país da sua amada para jogar suas ultimas temporadas. Mas desde o primeiro minuto que vestiu o colete e treinou em General Severiano, exibindo um refinado toque de bola junto a um sorriso e uma simpatia incomum aos grandes craques, passou a fazer diferença. Dentro e fora de campo.

Domingo, no final da taça Guanabara, não havia um só torcedor no hotel em que assisti a decisão, e eram muitos, de todas as torcidas, que não vibravam por ele. Os mais revoltados apenas questionavam: mas porquê o Botafogo? Ele não poderia ter ido para a Gávea? Atuar no meio campo do Flu ao lado do Deco? Ah! Seedorf, se todos os ídolos fossem igual a você. Não fossem pegos tarde da noite, alterados, abordando travestis ou flagrados no antidoping, tendo que devolver medalhas e gerar frustrações nos que torceram por ele. Não transformassem suas mansões em rodas de samba, que varressem madrugadas, ou não passassem doze horas por dia gravando propaganda no lugar de treinar e valorizar seu principal produto, que é o futebol. 

Seedorf não é artista pra dar beijinho no trânsito, como o Fred, não é metido a Hulk, como o Bernardo, nem se descontrola com facilidade como o Carlos Alberto. Foi pego na noite, sim, mas com a esposa na Sapucaí. Vai ao Barra Shopping e a praia como todo carioca, porém acorda cedo e vai trabalhar, como todo operário. Se o Botafogo teve um anjo das pernas tortas, que marcou sua história, era de se esperar que o s deuses do futebol reservassem a nova geração que não conheceu Garrincha, a do meu filho Guilherme, um novo anjo, negro, para manter sua estrela mais brilhante e menos solitária.

Poucos no esporte alcançam seu fundamental papel social, de dar exemplo para os meninos que se lançam em escolinhas, e quanto mais alto se exibirem, mais taças levantarem, maior será a repercussão e a luz que irradiarão por todos os campinhos. Por favor, Felipão, naturalize o Seedorf. Seria uma gentileza a tantos países que adotaram nossos craques. Coloque-o na seleção brasileira ao lado do Fernando, do Paulinho e do Zé Roberto. Se você não vencer a Copa do Mundo, pelo menos devolverá a nação um fundamento, talvez um detalhe, por que não, uma índole há muito esquecida pelos gramados, pelos corredores do senado, pela felpuda raposa que deram a missão de zelar por nossos, coitados, direitos humanos: ética, respeito e caráter.

Nenhum comentário:

Postar um comentário