quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A missão destes homens é salvar e reconstruir empresas

Downsizing, reestruturação, turnaround, reengenharia financeira e operacional: como o sashimi e o gel wet look, essas expressões freqüentaram bocas e cabeças dos executivos ao longo da década de 1990. A origem do processo, como na maior parte das inovações, foi a locomotiva da economia capitalista, os Estados Unidos. No Brasil, a onda encontrou como caldo de cultura empresas submetidas ao desgaste da inflação, da troca de gerações no comando e das mudanças na estrutura de preços. "Economias estáveis não revelam tantos reestruturadores porque os processos de redução de custos e unificação de sistemas operacionais e de informações muitas vezes são conduzidos pelas diretorias já instaladas", informa Manoel Horácio da Silva, um dos principais especialistas em ajuste de empresas no País. Revelado na Ericsson, Horácio comandou enxugamentos e fusões em grupos tão distintos como Vale do Rio Doce, Telemar, Sharp e Ficap. Agora na presidência do banco de investimentos Fator, com 300 funcionários, Horácio acredita que o período mais intenso das reestruturações já passou. "Quem não enxugou, morreu, com raras exceções", diz.
A competição mais forte na economia reduziu as margens de lucro em grande parte dos setores e deslocou o diferencial para o atendimento, explica o executivo. "Isso nos obriga a adotar um esquema bem mais ágil", afirma. As exceções são poucas entre os grandes grupos, agora que arrefeceu a privatização, forte indutora de processos de ajuste.
As renegociações de dívidas, com a conversão de créditos em ações, terminaram por aumentar a participação dos fundos de pensão e bancos de investimento na gestão cotidiana das empresas. O caso mais bem-sucedido dessa por vezes complexa convivência foi a Perdigão. Pesou para isso a mudança de foco em favor de produtos de maior valor agregado e a modernização do aparato industrial da empresa, conduzida por Nildemar Secches, diretor de participações do BNDES até ser convidado para tocar a reforma da companhia.
Hoje, um caso exemplar é o da Parmalat, líder em expansão no setor alimentício até a crise na matriz italiana, no ano passado. A organização emergencial da venda de ativos, de forma a financiar a recuperação do core business, o núcleo dos negócios da companhia, é uma das especialidades de empresas como a americana Alvarez & Marsal (uma das coordenadoras da transferência de controle da AT&T Latin America) e a brasileira Galeazzi & Associados. Contratada, ao lado de Alcides Tápias, executivo formado no Bradesco e com passagens pela Camargo Corrêa e pelo Ministério do Desenvolvimento, para elaborar o plano de recuperação da gigante dos laticínios.
O executivo que dá nome à companhia é Claudio Galeazzi. Ele começou a se projetar na Cecrisa, indústria catarinense especializada em revestimentos cerâmicos e celeiro de talentos gerenciais, e o fez pelo caminho espinhoso, mas por vezes inigualável da adversidade. Galeazzi, como o antecessor Antônio Maciel Neto, hoje na Ford, pavimentaram a saída para a concordata na qual a empresa esteve de 1991 a 1996.
Travessia conduzida em meio a uma drástica mudança no perfil do setor: os azulejos pequenos, mais simples, espécie de commodity, respondiam por 60% da produção de 32 milhões de m2. Esse total, em 2000, foi reduzido para 20%, por conta do aumento de participação de produtos mais sofisticados, de preço unitário maior. Fórmula perseguida, nem um pouco por acaso, na gestão de Maciel na Ford, em que a diversificação da oferta de veículos, com modelos como o EcoSport, permitiu uma recuperação de margem superior à sugerida pelo desempenho nas vendas.
Desafio semelhante marcou a gestão de Galeazzi nas Lojas Americanas. Uma das três maiores cadeias de varejo do País, a rede controlada pelo GP reduziu a competição direta com os supermercados em alimentos e produtos de higiene e limpeza. Focou em utilidades domésticas, produtos de demanda sazonal (ovos de Páscoa, brinquedos no Natal) e celulares. Cindiu a parte de imóveis na São Carlos e passou adiante um terço dos pontos de venda. Tudo para aumentar o ticket médio por cliente e a venda por área instalada.
A otimização de desempenho expressa no exemplo das Americanas deixou de ser mera vantagem face à concorrência para se tornar um imperativo de sobrevivência. Daí a generalização das técnicas de acompanhamento gerencial, por meio de softwares especializados e cursos para alta direção e gerência média. Que terminaram, de certa forma, restringindo o espaço dos reestruturadores, conforme admite Manoel Horácio. A não ser em crise aguda, em especial quando a cura passa pela venda de ativos.
Com freqüência, tornar uma empresa atraente para potenciais compradores exige que antes ela vá às compras ou dê pistas de que tem fôlego para fazê-lo. Estratégia posta em prática logo na primeira grande experiência de reestruturação de Manoel Horácio, a Ficap. A Ericsson, então controladora, tinha definido uma mudança de prioridades, com a saída do ramo de fios e cabos de metal em toda a América Latina. O potencial comprador, Daniel Birmann, fazia planos de verticalizar a Caraíba Metais, fabricante de concentrado de cobre. No vôo de volta da Suécia, onde deixou o negócio alinhavado com a direção da Ericsson, Birmann jogou uma cartada forte para atrair Horácio: disse que só fechava negócio se o executivo seguisse à frente da empresa.
Blefe ou não, a insistência tinha lógica. Horácio trabalhara na empresa desde 1972, três anos depois de a Ericsson comprar a empresa da família Lee. Experimentara a convergência de culturas entre empresas diferentes, na incorporação da Elecab em 1978, e os dramáticos efeitos da passagem das tecnologias eletromecânicas para as digitais, de 1981 em diante, reduzindo o contingente de empregados da Ericsson de 13 mil para dois mil.
Depois, na passagem pela Sharp, no esforço para salvar o grupo Machline da falência, vendera sete das 19 empresas, adotando um foco que surpreendera o mercado: vindo de telecomunicações, optou por vender exatamente essa área para a Lucent, divisão de equipamentos da AT&T.
Passou adiante também a SID, ao intuir que a abertura comercial e o fim da reserva de mercado demandariam das fabricantes nacionais de computadores um volume de investimentos muito alto. Decidiu ainda disputar a liderança da eletrônica de consumo. O plano foi seguido à risca, recuperou as margens do conglomerado pela liderança nas vendas de TVs, fornos de microondas e videocassetes. Mas esbarrou na resistência da família ao último passo, a fusão com outras empresas nacionais do setor. A dívida, em quatro anos e meio, cedera de US$ 450 milhões para US$ 80 milhões.
De volta à Ericsson, que vendera a Ficap ao grupo Paraibuna de Metais e reabsorvera a empresa diante das dificuldades que ela vivia com a aceleração inflacionária, Horácio viu-se encarregado de completar o ajuste da companhia. Trabalho que o levara a cruzar o caminho de Birmann e receber o repto do gaúcho para que permanecesse. Mesmo creditando a confidência de Birmann a um ardil de sedução, Horácio topou e partiu para a fase mais difícil. Fundir quatro empresas com a Ficap: a Marvin e as subsidiárias de cabos da Siemens, Alcoa e Alcan.
O planejamento estabelecia que a cada semestre uma delas fosse incorporada, começando pela compradora, a Marvin. "Era a filha engolindo a mãe, para fortalecer-se", compara. Tudo sem deixar aflorar uma divisão entre vendidos e vendedores. "Isso é o que mata uma fusão", explica. A única coisa fora do script foi o veto do Cade à absorção da Alcoa, embora não deixasse de significar, por vias tortas, uma certificação do crescimento da fatia de mercado trazida pela fusão das outras quatro.
O trabalho motivou estudos acadêmicos, como os de Filinto Müller e Roberto Terziani, chamando a atenção de headhunters e do grupo que arrematara a Telemar, o único dos consórcios que não contava com uma operadora internacional de telefonia, exatamente para a companhia encarregada de atender a maior extensão territorial e o maior número de clientes, dentre as três fatias da Telebrás para a privatização. E que reunia duas ilhas de excelência, Telemig e Telebahia, soterradas sob alguns dos piores desempenhos do período estatal, como a Telerj, recordista de espera em sinais para ligações ou prazos para a instalação de linhas. O desempenho na Ficap rendera o convite para a Telemar. E experiência sobre fusão e integração cultural de empresas distintas a ser testada numa escala inédita.
"A Telemar era pouco mais era que um nome fantasia, porque as 17 teles eram conduzidas sob a influência dos governadores, no período estatal" recorda Horácio. "Isso criara feudos e vícios, do fornecimento de equipamentos à escolha de sistemas, diferentes em cada Estado", diz.
O enfrentamento deste quadro reduziu à metade o custo das linhas, com descontos de 30% a 50% nas compras de maquinário e um agressivo programa de corte de pessoal. Com ênfase nas demissões voluntárias, o número de funcionários caiu de 42 mil para 18 mil, ao mesmo tempo em que o total de linhas subia de oito milhões para 18 milhões. A carga de trabalho individual aumentou, o que exigiu programas de motivação e uma adaptação cultural dos funcionários aos novos padrões.
O plano de unificação partiu do caixa, centralizado na holding. Isso começou a despertar resistências. O mesmo vale para a uniformização de controles e a integração de sistemas operacionais e de informática. Trocada em miúdos, a mudança reduzia a autonomia das regionais, por vezes mexendo com interesses estabelecidos há muito, por acomodações políticas. "É muito raro, para não dizer absolutamente improvável, um curto-circuito numa central como a da Barra da Tijuca, responsável por 30% do tráfego telefônico do Rio", lembra. "Aquele acidente, estranho para falar o mínimo, funcionou literalmente como uma prova de fogo para nós", lembra.
Não foi o único episódio de contornos policialescos associado ao duro ajuste na Telerj. Horácio conviveu por algum tempo com ameaças de morte em telefonemas anônimos. Reforçou hábitos adquiridos depois de escapar de uma tentativa de seqüestro na Ficap, como o de evitar repetir horários de chegada e saída ou trajetos até o escritório. Andando de táxi ou, o que é bem mais raro, dirigindo o carro. "Sou o mais randômico que consigo ser", define, tomando emprestado o termo que define a estrutura aleatória da memória do computador.
A trajetória dele na Telemar, contudo, não pode ser tachada de aleatória, nem na chegada, nem na saída. "Traçamos um plano de transformação que se encerrava com a integração societária, a incorporação das 16 teles por uma, para gerar ganhos fiscais e reduzir despesas administrativas e de informações legais a acionistas", explica. Encerrado o processo, sem maiores contestações por bancos de investimento e investidores em geral, acaba junto o ciclo de Horácio na companhia. Pelo menos na versão dele e dos controladores, à época, para o divórcio amigável.
Não houve, de fato, disputas trabalhistas em juízo nem lavagem de roupa suja, rescaldo comum na saída de executivos de peso. Nada que se comparasse à pendência que ainda hoje divide Edson Vaz Musa, trazido a peso de ouro da Rhodia, e os controladores da Unipar, responsáveis pela ruptura do contrato de gestão. Ou das informações de bastidores, nunca atestadas oficialmente, de que a falta de cobertura para riscos cambiais teria custado o cargo a Maria Silvia Bastos Marques na Companhia Siderúrgica Nacional. Versão que por sinal Horácio, à época representante da Vale do Rio Doce no Conselho de Administração da CSN, refuta: "Não era possível, numa gestão amarrada como aquela, fazer política de hedge ou deixar de fazer sem a anuência dos controladores".
Todas essas diferenças sugerem uma separação consensual, sem conflitos. Mas com um grau de desgaste inevitável, pela dureza do processo de ajuste e da convivência com os controladores. "Depois da base pronta, da empresa no ponto para decolar, os donos querem tocar de novo, é normal", explica. "Todos reagiríamos assim se alguém demorasse a nos devolver um brinquedo." Não por acaso, também outros reestruturadores prestigiados, como Claudio Galeazzi e Marcelo Corrêa, coordenador de mudanças de foco e reengenharias financeiras na Hering e na VBC (Votorantim, Bradesco, Camargo Corrêa), exigem total autonomia na montagem de equipes. Condição necessária, mas nem sempre suficiente. "A carta branca que recebemos na entrada, com a empresa à míngua, vai ganhando tons de cinza à medida que a recuperação acontece", admite Horácio, que agora testa seu pragmatismo à frente do Fator.
No banco, tenta vencer as resistências da família Amaro e da Fundação Rubem Berta à fusão entre a Varig e a Tam, mais novo desafio proposto ao banco, um dos mais ativos e polêmicos no segmento de M & A (merger & acquisition, no jargão anglófono do mercado financeiro para fusões e aquisições), como demonstram a organização do consórcio Telemar em conjunto com o hoje liquidado Fonte Cindam e a união das mineradoras e processadoras de não-ferrosos em torno da Paranapanema, negócio que ficou devendo a rentabilidade prometida porque a jóia da coroa, a Vale do Rio Doce, terminou em outras mãos. Ao mesmo tempo em que arruma a casa no Fator, com o aval dos quatro sócios, Horácio não perde a capacidade de surpreender-se. "Sabe que este ano será o primeiro com orçamento unificado em 37 anos de banco?", comenta. "Temos muito a arrumar e crescer por aqui."

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